Sentiu no pescoço a cintilância aguda da lua. Podia cheirar a adrenalina, o corpo todo uma corrente elétrica, cada simples passo um fagulha mais ardente. Estava feliz. Não se deu conta, mas sorria com os dentes arreganhados, sorria com a impaciência de quem esperara demais para rebentar em alegria. Comovidas pelo impulso que rodeava sua aura, as mãos brilhavam, frias, sem suar pela primeira vez em tempos.
Quando se sentira tão viva pela última vez? Não conseguia se lembrar. Estranha antítese essa da liberdade trocada pelo segredo. Sim, segredo, claro, não havia outro modo. Imaginava a cara das amigas, no almoço do próximo sábado, ouvindo ela contar como Heitor nem reagira ao seu ataque súbito. Como aquele paquiderme nem tivera a decência de se defender, sucumbira rápido sobre o poder de sua agulha no pescoço largo. Engraçado como uma coisa tão trivial, tão necessária como o ar podia ter lhe sido tão útil. Aliás, fazia todo o sentido. Agora sim, podia respirar.
Meses de planejamento, um estudo detalhado da rotina de Heitor, suas nuances mais secretas desvendadas em planilhas simples do Office. Finalmente aquele curso na SOS valera a pena. Elaborou com fervor seu festim diabólico, sua libertação pagã, seu ato de misericórdia. Impressionante como era fácil comprar ácido sulfúrico em lojas de materiais de construção. O tonel grande, de aço maciço, projetado para guardar despojos mil não podia ser uma última morada mais adequada. Heitor finalmente iria estar onde merecia.
Chegou em casa sem pressa, chacoalhou a chave antes de virar na fechadura, maldita porta antiga... Encostou o corpo na parede da sala, apoiada pela mesinha pequena que guardava as correspondências, organizadas numa pilha de importância. Saboreou o silêncio inédito numa noite de quarta-feira. Andou até a cozinha e serviu-se de uma taça de vinho. Sorveu um pequeno gole e suspirou, antecipando a onda ainda maior de alivio que haveria de acertá-la na face.
No quarto observou-se atentamente no espelho, a roupa impecável, o avental de açougue realmente fora uma excelente idéia. A ausência de qualquer pingo do sangue de Heitor confirmava o caráter sacro de sua missão. Tinha cumprido seu chamado. Entrou no banheiro da suíte, despiu-se devagar fitando a porta escancarada. Tinha reconquistado o direito da nudez despudorada da solidão. Pulou no box e tomou uma chuveirada rápida, o jato de água quente massageando e absolvendo cada pedaço de seu corpo . Secou-se com cuidado e calçou os chinelos dispostos no tapete felpudo, antiderrapante.
Caminhou, decidida, para a cama. Sentou-se na beirada, alisando os lençóis de linho egípcio, de setenta e nove fios. Com reverência deixou as mãos percorrerem toda a extensão do colchão king size, cobrindo cada pedaçinho. Seca. Nunca mais veria uma toalha molhada profanando a secura religiosa de sua cama. Estava livre. Gargalhou sozinha, sentindo a cabeça ficar mais leve com o ressonar de seus grilhões se rompendo.